Ariranhas e o Olhar Turvo sobre o Próprio Quintal
ACADEMIA LUVERDENSE DE LETRAS


Lucas do Rio Verde, sol ardente, janeiro, pancadas de chuvas, todas as manhãs e tardes. A notícia voou como pólvora: uma ariranha no lago da cidade! Bicho simpático e com graça um dos maiores mustelídeos do planeta morador de rios fundos e ecossistemas exuberantes. A foto, claro! Bombou nas redes sociais, teve até live do Pikachu, não aquele dos animes, um outro, e a cidade parecia ter ganhado uma mascote novinha em folha – confesso que fiquei com pena do “Porquinho da 163”, - Até aí tudo certo. O desafio, meus amigos, é que junto com o encanto, surgiu o de sempre "Ah que foca linda!"

Sim uma foca. Bem no Mato Grosso. No Cerrado, no lago da cidade. A quilômetros de qualquer oceano. Ou seja, a pérola da ignorância soltada com a leveza de quem troca manga por mamão, escancarou a ferida: a contradição de viver em um estado de riqueza natural e cultural sem igual e, mesmo assim, ser um forasteiro em sua própria casa. É irônico para não dizer triste.

Enquanto a ariranha nadava tranquila, totalmente alheia a toda aquela bagunça taxonômica, boa parte de quem a observava já sonhava com a próxima escapada, para a praia, para as serras do Sul, ou quem sabe, a um destino internacional super em alta. Tudo isso, sabe, em busca da tal "experiência", da "cultura", da "natureza", mas sempre longe, sempre fora. O grandioso e vibrante Mato Grosso, com suas maravilhas do Pantanal à Amazônia, passando pelo Cerrado, fica lá, coitado, como um mero cenário da vida, um lugar para viver, digo trabalhar, mas não para explorar, desvendar, ou simplesmente amar, vivenciar a grandiosidade local.

A cegueira vai além da fauna, viu? Quantos mato-grossenses conhecem de verdade a história e a riqueza dos povos indígenas que habitam essas terras há milênios? Quantos pararam pra ouvir as histórias, aprender sobre a sabedoria ancestral, ou só pra reconhecer a presença forte dessas culturas, a verdadeira raiz do nosso estado? É bem mais fácil idealizar o "exótico" lá fora, enquanto o verdadeiro "exótico" – o vizinho, o rio, a mata – é ignorado!

A "foca" no lago de Lucas do Rio Verde, ah, é só um sintoma, né? É o espelho que mostra nossa desconexão.

Moramos em um dos estados com a maior biodiversidade do globo, com uma tapeçaria cultural rica e multifacetada, todavia preferimos nos fascinar com o que está distante, com o que nos é mercantilizado como "o que vale". A ariranha, com sua aparição surpreendente, nos instigou a um olhar introspectivo, para o nosso próprio lar. Contudo a reação, para muitos, assemelhou-se a de um turista desatento, que troca o peixe-boi com o golfinho, o tuiuiú com a garça.

Quiçá seja hora de mudar a rota, de substituir o mapa do longínquo pelo guia do local. De desvendar os segredos da nossa terra, antes que a próxima "foca" no lago nos recorde, novamente, o quanto desperdiçamos ao desconsiderar a imensidão que nos envolve. Não por imposição, mas por uma autêntica ânsia de pertinência e aprendizado. Afinal, a real aventura pode estar mais próxima do que supomos. E é muito provável que ela não tenha barbatanas e um corpo de mamífero marinho!

 

Sérgio Aparecido dos Santos Vieira