Heloneida Studart, literatura, memória e resistência: o que considerar após 60 anos do golpe de 64
ACADEMIA LUVERDENSE DE LETRAS


Claudia Miranda S M Franco

Sessenta anos se passaram desde o golpe civil-militar de 1964 e, ainda hoje, a literatura de Heloneida Studart nos convoca a enfrentar as memórias dolorosas da ditadura brasileira. Escritora, feminista, nordestina, Studart concebeu a chamada trilogia da tortura — O pardal é um pássaro azul (1975), O estandarte da agonia (1981) e O torturador em romaria (1986) — obras que expõem, em diferentes registros, o entrelaçamento da violência estatal com a violência patriarcal. Ao lado dessa trilogia, seu ensaio Mulher, a quem pertence o seu corpo (1976) ecoa como um manifesto urgente pela autonomia feminina, tornando ainda mais evidente a coerência entre sua militância política e sua produção literária.

Em O pardal é um pássaro azul, publicado no auge da censura, a protagonista Marina recorda a vida entre os muros de um casarão nordestino e as lembranças de um primo preso por pichar nos muros da cidade a frase que dá título à obra: “o pardal é um pássaro azul”. O que parece absurdo ganha dimensão simbólica: “quem ousa dizer o que não se quer ouvir será calado”. Narrado em primeira pessoa, o romance revela o silenciamento das mulheres, inscrito no seio da família Carvalhais Medeiros: “Dalva ou eu, poderíamos nos encarregar do discurso de agradecimento, mas em nossa família mulher não fala em público”, uma representação fidedigna ao patriarcalismo. Ao lado dessa repressão doméstica, surge a violência estatal que retira de Marina não apenas a presença do primo João, que ela amava, mas também a esperança: “O pardal era um pássaro azul só nos meus olhos de menina. Depois, entendi: era um aviso de que a liberdade era só um sonho”.

Se Marina é corpo marcado pela repressão, Carmélio, narrador de O torturador em romaria (1986), é a encarnação da banalidade do mal. Heloneida ousa ao entregar a voz para o próprio torturador, instaurando uma narrativa de desconforto ético e estético. Carmélio não é um monstro isolado, mas fruto de uma sociedade atravessada pela violência cotidiana: família, religião, Estado. Ao adotar o fluxo de consciência perturbado do narrador, a autora recusa a estetização da dor e nos lança em uma experiência de leitura em que, como observa Hannah Arendt, o mal não é exceção, mas se banaliza na rotina. Ainda assim, são as personagens femininas — Dorinha, Açucena — que, mesmo nas margens da narrativa, desestabilizam a fala masculina e afirmam resistências silenciosas.

Nesse conjunto, ganha relevo a leitura de Mulher, a quem pertence o seu corpo (1976). Se em Marina acompanhamos uma jovem que descobre sua condição de cativa, e em Carmélio vemos como a violência se estrutura socialmente, no ensaio, Heloneida fala diretamente às mulheres de seu tempo: “o corpo feminino foi e continua sendo tratado como território de posse e de disputa, nunca como território da própria mulher”. O que está em jogo é o mesmo que atravessa suas ficções: a apropriação do corpo feminino como objeto de controle — seja pelo patriarcado familiar, pela moralidade religiosa ou pelo autoritarismo de Estado.
A obra de Heloneida Studart continua a ser um gesto político e literário de resistência. Em tempos de ataques à memória e tentativas de revisão histórica, sua escrita nos lembra que as correntes da ditadura não se restringiram às celas escuras, mas também prenderam corpos e subjetividades em casas, igrejas e escolas. Revisitar Heloneida, no marco dos 60 anos do golpe, é reconhecer na literatura um espaço de memória e denúncia, mas também de sonho. Pois, mesmo quando a liberdade parece apenas um aviso distante, permanece vivo o desejo de acreditar que, contra todas as violências, o pardal pode ser, sim, um pássaro azul.